4 de November de 2025 Notícia
63 min

Mater Populi Fidelis: Dicastério desaconselha títulos marianos “Corredentora” e “Medianeira de Todas as Graças”

Nova nota doutrinal reafirma Cristo como único Mediador e restringe o uso de alguns títulos marianos. Leia o documento completo.

Equipe Centro Dom Bosco

Equipe Centro Dom Bosco


O Dicastério para a Doutrina da Fé publicou, nesta segunda (4), a nota doutrinal Mater Populi Fidelis (Mãe do Povo Fiel), assinalada pelo Cardeal Víctor Manuel Fernández, sobre alguns títulos atribuídos à Santíssima Virgem Maria.

O documento, aprovado pelo Santo Padre Leão XIV pretendeu determinar quais títulos marianos poderiam ser usados com segurança e quais deveriam ser evitados, ressaltando, de acordo com o próprio texto, “Uma profunda fidelidade à identidade católica e, ao mesmo tempo, um particular esforço ecumênico”.

Desta forma, dois títulos marianos que estão em voga há pelo menos cinco séculos no uso habitual de santos doutores e muitos populares católicos, foram desaconselhados pelo Dicastério.

"Corredentora" e "Medianeira de Todas as Graças": Títulos centenários desaconselhados

A nota é categórica ao desaconselhar o uso do título “Corredentora”.

Embora reconheça que Maria colaborou de modo singular com a obra redentora de Nosso Senhor Jesus Cristo, o texto afirma que esse título é “inoportuno” e pode “gerar confusão e desequilíbrio na fé cristã”.

O documento também rejeita a expressão “Medianeira de Todas as Graças”, justificando que “Maria não é mediadora da graça que Ela mesma recebeu”.

Segundo a nota, é “teologicamente inadequado” o uso de ambos os títulos, mesmo quando usados por santos e doutores da Igreja, fato que origina mais confusão do que esclarecimento.

Uma nota em favor do ecumenismo

Muitos, de dentro do círculo católico, já começaram a analisar a nota como “inoportuna”, vendo uma possível diluição do conteúdo dogmático tradicional em favor da ênfase “pastoral” e ecumênica do último concílio católico  — Concílio Vaticano II — , sob a alegação de tentar aproximar os “não católicos”, em especial os protestantes.

Além disso, o documento chega em momento de grave crise da Igreja, que enfrenta situações mais urgentes e profundas, como é o caso da Igreja na Alemanha, à beira de um cisma por contrariar ensinamentos morais, doutrinários e sacramentais do catolicismo.

Tudo isso, somado à autoridade questionável do Cardeal Víctor Manuel Fernández, conhecido por ser um prelado  revolucionário infiltrado no Vaticano e defensor de pautas nada ortodoxas como “as bênçãos de pares gays”.

Os defensores da Corredenção e Mediação de Nossa Senhora

A recente nota do Dicastério contrasta, principalmente, com a tradição teológica e espiritual que, ao longo dos séculos, reconheceu na Virgem Santíssima um papel singular na obra da salvação.

Diversos santos e doutores da Igreja — como Santo Irineu, São Bernardo de Claraval e São Luís Maria Grignion de Monfort, em seu Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgemafirmaram que Maria cooperou de modo especial com Cristo na Redenção, razão pela qual foi, em muitos escritos, chamada de “corredentora” e “Medianeira de Todas as Graças”.

Esses títulos, ainda que não proclamados de forma dogmática, já eram plenamente aceitos na piedade católica e sustentados por papas como Leão XIII, Pio X e Pio XII.

O Tesouro da Devoção a Nossa Senhora

Diante das controvérsias, a verdadeira fé nos chama a redescobrir e a aprofundar a devoção mariana. Como ensinavam os santos, honrar a Mãe de Deus não diminui a glória de Cristo; ao contrário, é um caminho seguro e fecundo para chegar a Ele.

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Veja a Nota Doutrinal "Mater Populi Fidelis" Completa

"Introdução

1. [Mater Populi fidelis] A Mãe do Povo fiel é contemplada com afeto e admiração pelos cristãos porque, se a graça nos quer semelhantes a Cristo, Maria é a expressão mais perfeita da sua ação que transforma a nossa humanidade. Ela é a manifestação feminina de tudo quanto pode operar a graça de Cristo no ser humano. Diante de tal formosura, movidos pelo amor, muitos fiéis procuraram sempre referir-se à Mãe com as palavras mais belas e exaltaram o lugar peculiar que ela tem junto a Cristo.

2. Recentemente este Dicastério publicou as Normas para proceder no discernimento de presumidos fenômenos sobrenaturais. É frequente que, em relação a estes fenômenos, se utilizem determinados títulos e expressões referidas à Virgem Maria. Esses títulos, alguns dos quais já aparecem nos Santos Padres, não são sempre utilizados com precisão; às vezes muda-se o seu significado ou são mal interpretados. Além dos problemas terminológicos, alguns títulos apresentam dificuldades importantes no que se refere ao conteúdo, pois, com frequência, levam a uma compreensão errada da figura de Maria, o que tem sérias repercussões a nível cristológico, eclesiológico e antropológico.

3. Na interpretação destes títulos aplicados à Virgem Maria, o principal problema é como se compreende a associação de Maria na obra redentora de Cristo, ou seja, «qual é o significado dessa singular cooperação de Maria no plano da salvação?». O presente documento, sem querer esgotar a reflexão, nem ser exaustivo, busca preservar o equilíbrio necessário que, dentro dos mistérios cristãos, deve ser estabelecido entre a única mediação de Cristo e a cooperação de Maria na obra da Salvação, e pretende mostrar também como esta se expressa em diversos títulos marianos.

A cooperação de Maria na obra da Salvação

4. Tradicionalmente a cooperação de Maria na obra da Salvação foi abordada a partir de uma dupla perspectiva: a sua participação na Redenção objetiva, realizada por Cristo durante sua vida e particularmente na Páscoa, e a influência que ela tem atualmente sobre os que foram redimidos. Na realidade, estas questões estão interligadas e não podem ser consideradas isoladamente.

5. A participação de Maria na obra salvadora de Cristo está atestada nas Escrituras, que apresentam o acontecimento salvador realizado em Jesus Cristo como uma promessa nos escritos veterotestamentários e como uma realização no Novo Testamento. Assim, Maria é prefigurada em Gn 3, 15, porque é a mulher que participa da vitória definitiva contra a serpente. Por isso, não chama a atenção que Jesus se dirija a Maria com a denominação de «Mulher» na cena do Calvário (Jo 19, 26). Em Caná, também, Jesus a chama «Mulher» (Jo 2, 4) remetendo a Maria e à sua função, junto a Ele, na “Hora” da Cruz.

6. Ali, naquela “Hora”, aparece a cooperação de Maria, que novamente pronuncia o “sim” da Anunciação e, nesse momento sagrado, o Evangelho deixa de colocar nos lábios de Jesus a palavra «Mulher» (Jo 19, 26),apresentando-a como «Mãe» (Jo 19, 27). Quando o Evangelho explica que, como resposta, o discípulo que nos representa a todos a recebeu, utiliza um verbo que no Evangelho assume o sentido de “acolher” (lambanō) na fé (cf. Jo 1, 11-12; 5, 43 e 13, 20). O mesmo verbo que utiliza o quarto Evangelho para expressar que a Luz veio para os seus e eles não a “acolheram” (Jo 1, 11). Ou seja, o discípulo que ocupava o nosso lugar junto à Maria, acolheu-a como mãe na fé. Somente depois de nos entregar Maria como mãe, Jesus reconhece que «tudo se consumara» (Jo 19, 28). Esta solene alusão à consumação impede que o episódio seja interpretado superficialmente. A maternidade de Maria a nosso respeito constitui parte da consumação do plano divino que se realiza na Páscoa de Cristo. Em modo semelhante, o Apocalipse apresenta a «Mulher» (Ap 12, 1) como mãe do Messias (cf. Ap 12, 5) e como mãe do «resto da sua descendência» (Ap 12, 17).

7. Convém recordar que Maria de Nazaré pode ser considerada a «testemunha privilegiada» dos eventos narrados nos Evangelhos (cf. Lc 1-2; Mt 1-2) que marcaram a infância de Jesus. Lucas, no prólogo do seu Evangelho, adverte os seus leitores: «Visto que muitos empreenderam compor uma narração dos factos que entre nós se consumaram, como no-los transmitiram os que desde o princípio foram testemunhas oculares», ele também decidiu escrever «depois de tudo ter investigado cuidadosamente desde a origem» (Lc 1, 1-3). Entre essas testemunhas oculares destaca-se Maria, protagonista direta da concepção, nascimento e infância do Senhor Jesus. Pode dizer-se o mesmo dos relatos da paixão, já que estava «junto à cruz de Jesus» (Jo 19, 25), e esperando o Pentecostes, quando os apóstolos se entregavam «à oração, com algumas mulheres, entre as quais Maria, mãe de Jesus» (Act 1, 14).

8. No Evangelho de Lucas, Maria é a nova Filha de Sião que recebe e transmite a alegria da salvação. Lucas recorre às promessas proféticas que anunciavam a alegria messiânica (cf. Sf 3, 14-17; Zc 9, 9). Nela se cumprem as promessas que fizeram saltar de alegria João Batista (cf. Lc 1, 41). Isabel apresenta-se como indigna de receber a visita de Maria: «E donde me é dado que venha ter comigo a mãe do meu Senhor?» (Lc 1, 43). Isabel não diz: “Donde me é dado que venha ter comigo o meu Senhor?”. Refere-se diretamente à mãe, com a qual podemos advertir a conexão inseparável entre a missão de Cristo e a de Maria. Isabel fala cheia do Espírito Santo (cf. Lc 1, 41), de modo que a sua atitude diante de Maria se apresenta como um modelo de fé. Movida pelo Espírito Santo, ela diz as seguintes palavras: «Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre!» (Lc 1, 42). Chama a atenção que, sob a ação do Espírito, não lhe baste chamar de “bendito” a Jesus, mas também chama a mãe de “bendita”. Contempla-os intimamente unidos neste momento de gozo messiânico. Maria aparece aqui como a “Feliz” por excelência: «Feliz de ti que acreditaste» (Lc 1, 45); «o meu espírito se alegra» (Lc 1, 47); «me chamarão bem-aventurada todas as gerações» (Lc 1, 48). Isto adquire maior importância se se adverte que, no Evangelho de Lucas, esta felicidade não aparece como um estado de ânimo, mas como o cumprimento das promessas messiânicas nos pequenos (cf. Lc 6, 20-22), que têm uma grande recompensa no céu (cf. Lc 6, 23).

9. Nos primeiros séculos do cristianismo, os Santos Padres interessaram-se principalmente pela maternidade divina de Maria (Theotokos), pela sua virgindade perpétua (Aeiparthenos), pela sua perfeita santidade, livre do pecado durante toda a sua vida (Panagia) e pela sua função de nova Eva concentrando no mistério da Encarnação a reflexão sobre a associação de Maria à Redenção de Cristo. O “sim” de Maria em resposta à saudação do Arcanjo Gabriel, para que o Verbo de Deus se fizesse carne no seu ventre (cf. Lc 1, 26-27), dá ao ser humano a possibilidade de ser divinizado. Por isso, Santo Agostinho chama a Virgem de «cooperadora» na Redenção, sublinhando tanto a ação de Maria junto a Cristo como a sua subordinação a Ele, porque Maria coopera com Cristo para que nasçam «na Igreja os fiéis» e, por isso, a podemos chamar Mãe do Povo fiel.

10. Durante o primeiro milénio, a reflexão sobre a Virgem Maria na Igreja remete à liturgia. A grande e rica diversidade das tradições litúrgicas do Oriente cristão quis ser um eco fiel das Sagradas Escrituras, dos Concílios e dos Padres da Igreja. A lex orandi que se transformou em lex credendi, configura a mariologia oriental desde a hinografia, iconografia e a piedade popular. Por exemplo, a partir do século V estabelecem-se no Oriente as festas marianas que depois, no século VII, passaram ao Ocidente. A participação da Mãe de Deus na obra da salvação comemora-se, especialmente, não apenas em todas as anáforas e liturgias eucarísticas das Igrejas orientais, mas, sobretudo, através dos textos hinográficos utilizados nas Horas canônicas, presentes nas diversas tradições litúrgicas do Oriente cristão. Na hinografia abundam as composições dedicadas à Maria com alegorias bíblicas, que permitiram aprofundar no mistério fundamental da Encarnação e do seu significado para a redenção em Cristo, na linguagem lírica de simbolismo poético capaz de expressar o espanto e a maravilha de quem, sendo da mesma estirpe de Maria, contempla os prodígios que o Todo-poderoso realizou nela.

11. O ensinamento dos primeiros Concílios Ecuménicos começa a delinear o dogma de Maria, Mãe de Deus, que será proclamado no Concílio de Éfeso. O Oriente cristão sempre sustentou doutrinalmente aqueles dogmas definidos por estes primeiros concílios, ao menos naquelas Igrejas que aceitaram os Concílios de Éfeso e Calcedônia. Ao mesmo tempo, acolheu em suas tradições litúrgicas, hinográficas e iconográficas as narrações e as lendas marianas populares referidas aos relatos da infância e da morte de Jesus. Estes relatos buscam alimentar a piedade do Povo de Deus, dando voz ao lirismo das imagens poéticas, que não tem outro objetivo senão aquele de despertar o espanto. Essa veneração à Mãe de Deus, manifesta-se também por meio da iconografia que oferece uma imagem de Maria e do Verbo encarnado. É significativo que as iconografias tradicionais dessas Igrejas, vinculadas aos Concílio de Éfeso e de Calcedônia, representem Maria majoritariamente como «Theotokos», e tenham sido criadas para contemplar nelas a Virgem-Mãe que abraça e apresenta ao mundo seu Filho, o Menino Jesus, enquanto intercede pela humanidade perante Ele. Assim, a iconografia mariana oriental, como kerygma e recordação visual da teologia dos primeiros Concílios e dos Santos Padres, quer ser uma tradição visual dos títulos específicos que se aplicam à Virgem. Por isso, os ícones tem que ser “lidos” a partir da liturgia e dos hinos. Maria não é objeto de um culto que se equipara ao de Cristo, mas que se insere no mistério de Cristo através da Encarnação. Ela é a Theotokos, a Virgem Mãe que apresenta seu Filho Jesus, o Cristo, e é, ao mesmo tempo, a Odēgētria que mostra, apontando com sua mão, o único Caminho que é Cristo.

12. A partir do século XII a teologia ocidental dirige o seu olhar para a relação que une a Virgem Mãe com o mistério da Redenção cruenta do Calvário e relaciona a cena da espada de Simeão com a Cruz de Cristo. A presença de Maria aos pés da Cruz entende-se como sinal de fortaleza cristã, cheia de amor materno. São Bernardo fala da cooperação de Nossa Senhora no sacrifício redentor num comentário sobre a apresentação de Jesus no templo. Arnaldo, amigo de São Bernardo e abade beneditino de Bonneval († depois de 1159), considera pela primeira vez a cooperação de Maria com o sacrifício do Calvário junto a seu Filho Jesus Cristo.

13. A cooperação de Maria com o Filho na obra da Salvação foi exposta pelo Magistério da Igreja. Como diz o Concílio Vaticano II, «consideram com razão os Santos Padres que Maria não foi utilizada por Deus como instrumento meramente passivo, mas que cooperou livremente, pela sua fé e obediência, na salvação dos homens». Esta associação da Virgem está presente tanto na vida terrena de Jesus Cristo (concepção, nascimento, morte e ressurreição) como no tempo da Igreja.

14. O dogma da Imaculada Conceição destaca a primazia e unicidade de Cristo na Redenção, porque também a primeira dos redimidos é redimida por Cristo e transformada pelo Espírito, antes de qualquer possibilidade de uma ação própria. É a partir desta especial condição de primeira redimida por Cristo, de primeira transformada pelo Espírito Santo, que Maria pode cooperar mais intensa e profundamente com Cristo e com o Espírito, convertendo-se em protótipo, modelo e exemplo do que Deus quis realizar em cada pessoa redimida.

15. A colaboração de Maria na obra da Salvação tem uma estrutura trinitária, porque é fruto de uma iniciativa do Pai, que olhou a pequenez de sua Serva (cf. Lc 1, 48); brota da kenōsis do Filho, que se humilhou tomando a forma de Servo (cf. Fl 2, 7-8) e é efeito da graça do Espírito Santo (cf. Lc 1, 28.30) que dispôs o coração da jovem de Nazaré para responder na Anunciação e durante toda a vida de comunhão com seu Filho. São Paulo VI ensinava que «na Virgem Maria, de fato, tudo é relativo a Cristo e dependente d’Ele: foi em vista d’Ele que Deus Pai, desde toda a eternidade, a escolheu Mãe toda santa e a plenificou com dons do Espírito a ninguém mais concedidos». O sim de Maria não é uma simples condição prévia a algo que poderia ter chegado ao fim sem o seu consentimento e colaboração. A sua maternidade não é simplesmente biológica e passiva, mas é uma maternidade «plenamente ativa» que se une ao mistério salvífico de Cristo como instrumento querido pelo Pai no seu projeto de salvação. Ela «é a garantia de que Ele, enquanto “nascido de mulher” (Gal4, 4), é autêntico homem, porém ela é também, desde a proclamação do dogma de Nicéia, a Theotokos, a que dá à luz a Deus».

Títulos referidos à cooperação de Maria na Salvação

16. Dentre os títulos com os quais se invocaram Maria (Mãe da Misericórdia, Esperança dos pobres, Auxílio dos cristãos, Socorro, Advogada, etc.) há alguns que fazem referência, em maior medida, à sua cooperação na obra redentora de Cristo, como por exemplo Corredentora e Medianeira.

Corredentora

17. O título de Corredentora aparece no século XV como correção à invocação de Redentora (como abreviação de Mãe do Redentor) que Maria vinha recebendo desde o século X. São Bernardo atribui a Maria um papel aos pés da Cruz que dá lugar ao título de Corredentora e que aparece pela primeira vez num hino anônimo do século XV em Salisburgo. Ainda que a denominação de Redentora se tenha mantido durante os séculos XVI e XVII, desapareceu totalmente no século XVIII para ser substituída por Corredentora. A investigação teológica da cooperação de Maria na Redenção, durante a primeira metade do século XX, chegou a aprofundar mais o conteúdo do título de Corredentora.

18. Alguns Pontífices utilizaram este título sem se deterem demasiado em explicá-lo.Geralmente apresentaram-no de duas maneiras diversas: em relação à maternidade divina, enquanto Maria, como mãe, tornou possível a Redenção realizada em Cristo,ou ainda, em referência à sua união com Cristo junto à Cruz redentora. O Concílio Vaticano II evitou utilizar o título de Corredentora por razões dogmáticas, pastorais e ecuménicas. São João Paulo II utilizou-o, ao menos em sete ocasiões, relacionando-o especialmente com o valor salvífico da nossa dor oferecida junto à de Cristo, ao qual se une Maria sobretudo na Cruz.

19. Na Sessão Ordinária (Feria IV)de 21 de fevereiro de 1996, o Prefeito da então Congregação para a Doutrina da Fé, o cardeal Joseph Ratzinger, diante da pergunta se era aceitável a petição do movimento Vox Populi Mariae Mediatrici para uma definição do dogma de Maria como Corredentora ou Medianeira de todas as graças, respondeu em seu voto particular: «Negativo. O significado preciso dos títulos não é claro e a doutrina neles contida não está madura. Uma doutrina definida de fé divina pertence ao depósito da fé, ou seja, à revelação divina vinculada na Escritura e na tradição apostólica. Desta maneira, não se vê em modo claro como a doutrina expressa nos títulos esteja presente na Escritura e na tradição apostólica». Mais adiante, em 2002, expressou publicamente sua opinião contrária a este título: «A fórmula “Corredentora” distancia-se em demasia da linguagem da Escritura e da Patrística e, portanto, provoca mal-entendidos... Tudo procede d’Ele, como dizem sobretudo as Cartas aos Efésios e aos Colossenses. Maria é o que é graças a Ele. A palavra “Corredentora” obscureceria essa origem». O Cardeal Ratzinger não negava que houvesse na proposta de uso deste título boas intenções e aspectos válidos, porém sustentava que era um «vocábulo equívoco».

20. O então Cardeal mencionava as Cartas aos Éfesios e aos Colossenses, onde o vocabulário utilizado e o dinamismo teológico dos hinos apresenta, de tal modo, a centralidade redentora única e fontalidade do Filho encarnado que resta excluída a possibilidade de agregar outras mediações, porque «toda a espécie de bênçãos espirituais» nos são dadas «em Cristo» (Ef 1, 3), porque por Ele somos filhos adotivos (cf. Ef 1, 5) e n’Ele fomos agraciados (cf. Ef 1, 6), «pelo seu sangue, [...] temos a redenção» (Ef 1, 7) e Ele «derramou sobre nós» (Ef 1, 8) sua graça. N’Ele «fomos escolhidos como sua herança»(Ef 1, 11) e estávamos predestinados. E Deus quis n’Ele «fazer habitar toda a plenitude» (Cl 1, 19) «e, por Ele e para Ele, reconciliar todas as coisas» (Cl 1, 20). Semelhante louvor, sobre o lugar único de Cristo, convida a situar qualquer criatura num lugar claramente receptivo, bem como a uma religiosa e delicada cautela na hora de colocar qualquer forma de possível cooperação no âmbito da Redenção.

21. O Papa Francisco expressou, ao menos por três vezes, sua posição claramente contrária ao uso do título de Corredentora, alegando que Maria «jamais quis reter para si algo do seu Filho. Nunca se apresentou como corredentora. Não, discípula!». A obra da redenção foi perfeita e não necessita de acréscimo algum. Por isso, «Nossa Senhora não quis tirar nenhum título a Jesus [...]. Ela não pediu para ser uma quase-redentora ou corredentora: não. O Redentor é um só e este título não se duplica». Cristo «é o único Redentor: não existem corredentores com Cristo». Porque «o sacrifício da Cruz, oferecido com coração amante e obediente, apresenta uma satisfação superabundante e infinita». Se bem que nós possamos prolongar no mundo os seus efeitos (cf. Cl 1, 24),nem a Igreja, nem Maria podem substituir, ou aperfeiçoar, a obra redentora do Filho de Deus encarnado, que foi perfeita e não necessita de acréscimos.

22. Levando em consideração a necessidade de explicar o papel subordinado de Maria a Cristo na obra da Redenção, é sempre inoportuno o uso do título de Corredentora para definir a cooperação de Maria. Este título corre o risco de obscurecer a única mediação salvífica de Cristo e, portanto, pode gerar confusão e desequilíbrio na harmonia das verdades da fé cristã, pois «não há salvação em nenhum outro, pois não há debaixo do céu qualquer outro nome, dado aos homens, que nos possa salvar» (Act 4, 12). Quando uma expressão requer muitas e constantes explicações, para evitar que se desvie de um significado correto, não presta um bom serviço à fé do Povo de Deus e torna-se inconveniente. Neste caso, não ajuda a exaltar Maria como primeira e máxima colaboradora na obra da Redenção e da graça, porque o perigo de obscurecer o lugar exclusivo de Jesus Cristo, Filho de Deus feito homem por nossa salvação, único capaz de oferecer ao Pai um sacrifício de valor infinito, não seria uma verdadeira honra à Mãe. Com efeito, ela, como «serva do Senhor» (Lc 1, 38), orienta-nos para Cristo e pede-nos para fazer «o que Ele vos disser» (Jo 2, 5).

Medianeira

23. O conceito de mediação é utilizado na Patrística oriental a partir do século VI. Nos séculos seguintes, Santo André de Creta, São Germano de Constantinopla e São João Damasceno utilizam este título com diferentes significados. No Ocidente, tornou-se mais frequente o seu uso a partir do século XII, ainda que apenas no século XVII será enunciado como tese doutrinal. Em 1921 o Cardeal Mercier, Arcebispo de Malinas, com a colaboração científica da Universidade Católica de Lovaina e o apoio dos bispos, do clero e do povo belga, pediu ao Papa Bento XV a definição dogmática da mediação universal de Maria, porém o Papa não consentiu. Aprovou apenas uma festa com a missa própria e o ofício de Maria Medianeira. Desde então, até o ano de 1950 desenvolveu-se uma investigação teológica sobre a questão, que chegaria à fase preparatória do Concílio Vaticano II. O Concílio não entrou em declarações dogmáticas, mas preferiu apresentar uma extensa síntese «da doutrina católica acerca do lugar que Maria Santíssima ocupa no mistério de Cristo e da Igreja».

24. A expressão bíblica referida à exclusiva mediação de Cristo é peremptória. Cristo é o único Mediador, «pois há um só Deus, e um só mediador entre Deus e os homens, um homem: Cristo Jesus, que se entregou a si mesmo como resgate por todos» (1 Tm 2, 5-6). A Igreja explicou este lugar único de Cristo porque, sendo o Filho eterno e infinito, a Ele está unida hipostaticamente a Humanidade que assumiu. Este lugar é exclusivo dessa Humanidade e as consequências que derivam disso só podem aplicar-se a Cristo. Neste sentido preciso, o papel do Verbo encarnado é exclusivo e único. Diante de tal clareza da Palavra revelada, requer-se uma especial prudência na aplicação do título “Medianeira” a Maria. Face à tendência de ampliar os alcances da cooperação de Maria a partir deste termo, é conveniente precisar tanto o seu valioso alcance quanto os seus limites.

25. Por um lado, não podemos ignorar que existe um uso muito comum da palavra “mediação” nos mais diversos âmbitos da vida social, onde é entendido simplesmente como cooperação, ajuda, intercessão. Por consequência, é inevitável que se aplique a Maria no sentido subordinado e de nenhum modo se pretenda acrescentar alguma eficácia, ou potência, à única mediação de Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem.

26. Por outro lado, é evidente que houve um modo real de mediação de Maria para tornar possível a verdadeira encarnação do Filho de Deus na nossa humanidade, porque era requerido que o Redentor fosse «nascido de uma mulher» (Gl 4, 4). O relato da Anunciação mostra que não se tratou de uma mediação unicamente biológica, já que destaca a presença ativa de Maria perguntando (cf. Lc 1, 29.34) e aceitando com uma firme decisão: «Faça-se» (Lc 1, 38). Esta resposta de Maria abriu as portas da Redenção que toda a humanidade esperava e que os santos descreveram com poético dramatismo. Também nas bodas de Caná, Maria cumpriu uma função de mediadora quando apresentou a Jesus a necessidade dos esposos (cf. Jo 2, 3) e quando pediu aos servidores que seguissem as indicações de Jesus (cf. Jo 2, 5).

27. A terminologia da mediação no Concílio Vaticano II aparece referida sobretudo a Cristo, mas, às vezes, também à Maria, porém de maneira claramente subordinada. Com efeito, para ela preferiu-se usar outra terminologia centrada na cooperação ou na ajuda maternal. O ensinamento do Concílio formula claramente a perspectiva da intercessão materna de Maria, com expressões como «múltipla intercessão» e «proteção maternal». Estes dois aspectos unidos configuram a especificidade da cooperação de Maria na ação de Cristo pelo Espírito. Em sentido estrito, não podemos falar de outra mediação na graça que não seja a do Filho de Deus encarnado. Por isso, é necessário recordar sempre, e não obscurecer, a convicção cristã de que «deve crer-se firmemente, como dado perene da fé da Igreja, a verdade de Jesus Cristo, Filho de Deus, Senhor e único salvador, que no seu evento de encarnação, morte e ressurreição realizou a história da salvação, a qual tem n’Ele a sua plenitude e o seu centro».

Maria na mediação única de Cristo

28. Ao mesmo tempo, necessitamos recordar que a unicidade da mediação de Cristo é “inclusiva”, ou seja, Cristo possibilita diversas formas de participação no cumprimento do seu projeto salvífico porque, em comunhão com Ele, todos podemos ser, de alguma maneira, cooperadores de Deus, “mediadores” uns para com os outros (cf. 1 Cor 3, 9). Precisamente porque Cristo tem um poder infinitamente supremo, Ele pode promover os seus irmãos e torná-los capazes de uma verdadeira cooperação na realização dos seus desígnios. O Concílio Vaticano II sustentou que a «a mediação única do Redentor não exclui, antes suscita nas criaturas cooperações diversas, que participam dessa única fonte». Por isso, «há que aprofundar o conteúdo desta mediação participada, que deve ser todavia regulada pelo princípio da única mediação de Cristo». É verdade que a Igreja prolonga no tempo e comunica, em todo o lado, os efeitos do acontecimento pascal de Cristo e que Maria tem um lugar único no coração da Igreja mãe.

29. Se partimos desta convicção de que o Senhor ressuscitado promove, transforma e capacita os crentes para colaborarem com Ele na sua obra, a participação de Maria na obra de Cristo resulta evidente. Isto não ocorre por uma debilidade, incapacidade ou necessidade de Cristo mesmo, mas precisamente pelo seu poder glorioso, que é capaz de nos assumir, generosa e gratuitamente, como colaboradores da sua obra. Aquilo que deve ser destacado neste caso é, precisamente, o seguinte: que quando Ele nos permite que o acompanhemos e, sob o impulso da sua graça, demos o melhor de nós mesmos, é o seu próprio poder e a sua misericórdia que, por fim, são glorificados.

Fecundos em Cristo glorioso

30. Particularmente iluminador é o texto: «quem crê em mim também fará as obras que Eu realizo; e fará obras maiores do que estas, porque Eu vou para o Pai» (Jo 14, 12). Os cristãos, unidos a Cristo ressuscitado que voltou para o seio do Pai, podem realizar obras que superam os prodígios do Jesus terreno, porém sempre graças à sua união pela fé com Cristo glorioso. Foi o que se manifestou, por exemplo, na admirável expansão da Igreja primitiva, porque o Ressuscitado fez a sua Igreja participante nesta sua obra (cf. Mc 16, 15). Deste modo, a sua glória não foi diminuída, mas manifestou-se ainda mais, ao mostrar-se com um poder capaz de transformar os cristãos, tornando-os fecundos com Ele.

31. Nos Padres da Igreja esta ideia encontrou uma peculiar expressão no comentário a Jo 7, 37-39, porque alguns interpretaram a promessa dos «rios de água viva» como referida aos cristãos. Isso significa que os próprios cristãos, transformados pela graça de Cristo, convertem-se em mananciais para os demais. Orígenes explicava que o Senhor cumpre o que anunciou em Jo 7, 38 porque fez brotar de nós correntes de água: «a alma do ser humano, que é à imagem de Deus, pode conter em si e produzir a partir de si poços, fontes e rios». Santo Ambrósio recomendava beber do lado aberto de Cristo «para que abunde em ti a fonte da água que jorra para a vida eterna». São Tomás de Aquino expressava-o afirmando que se um cristão «se apressa em comunicar aos outros os diversos dons da graça que recebeu de Deus, a água viva flui do seu seio».

32. Se isto vale para cada cristão, cuja cooperação com Cristo se torna cada vez mais fecunda quanto mais se deixa transformar pela graça, com maior razão se deve afirmar de Maria, de um modo único e supremo. Porque ela é a «cheia de graça» (Lc 1, 28) que, sem colocar obstáculos à obra de Deus, disse: «Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra» (Lc 1, 38). Ela é a mãe que deu ao mundo o Autor da Redenção e da graça, que se manteve firme junto à Cruz (cf. Jo 19, 25), sofrendo com o Filho, oferecendo a dor do seu coração materno transpassado pela espada (cf. Lc 2, 35). Ela esteve unida a Cristo desde a Encarnação até à Cruz e à Ressurreição, de um modo exclusivo e superior a quanto poderia ocorrer com qualquer fiel.

33. Tudo isto não por méritos próprios, mas porque a ela se aplicaram plenamente, de forma peculiar e antecipada, os méritos de Cristo na Cruz, para glória do único Senhor e Salvador. Ela é, por fim, um canto à eficácia da graça de Deus, de modo que qualquer reconhecimento da sua beleza remete imediatamente à glorificação da fonte de todo bem: a Trindade. A grandeza incomparável de Maria está no que ela recebeu e na sua disponibilidade confiante a deixar-se preencher pelo Espírito. Quando nos esforçamos em atribuir-lhe funções ativas, paralelas às de Cristo, distanciamo-nos da beleza incomensurável que é especificamente sua. A expressão “mediação participada” pode expressar um sentido preciso e precioso do lugar de Maria, porém, se inadequadamente compreendida, poderia facilmente obscurecê-lo e até contradizê-lo. A mediação de Cristo, que sob alguns aspectos pode ser “inclusiva” ou participada, sob outros aspectos é exclusiva e incomunicável.

Mãe dos fiéis

34. No caso de Maria, esta mediação realiza-se de forma maternal,tal como fez em Caná e como se confirmou na Cruz. Assim explicava o Papa Francisco: «Ela é Mãe. E este é o título que ela recebeu de Jesus, ali mesmo, no momento da Cruz (cf. Jo 19, 26-27). Os teus filhos, tu és mãe. [...] Recebeu o dom de ser sua Mãe e o dever de nos acompanhar como Mãe, de ser nossa Mãe».

35. O título de Mãe tem as suas raízes na Sagrada Escritura e nos Santos Padres; é proposto pelo Magistério e a formulação do seu conteúdo teve um progresso até à exposição do Concílio Vaticano II e à expressão maternidade espiritual na encíclica Redemptoris Mater. A maternidade espiritual de Maria brota da sua maternidade física do Filho de Deus. Gerando fisicamente a Cristo, a partir da aceitação livre e fiel desta missão, a Virgem gerou na fé todos os cristãos que são membros do Corpo Místico de Cristo, ou seja, gerou o Cristo total, cabeça e membros.

36. A participação da Virgem Maria, como Mãe, na vida de seu Filho, desde a Encarnação até à Cruz e à Ressureição, dá um caráter único e singular à sua cooperação na obra redentora de Cristo, de maneira especial para a Igreja, «quando considera a maternidade espiritual de Maria para com todos os membros do Corpo Místico; em invocação confiante, quando experimenta a necessidade de intercessão da sua advogada e auxiliadora». Este aspecto materno é o que caracteriza a relação da Virgem com Cristo e sua colaboração em todos os momentos da obra da Salvação. Na sua missão como Mãe, Maria tem uma relação singular com o Redentor e, também, com os que foram redimidos, dos quais ela mesma é a primeira. Maria é typos (modelo) da Igreja e do novo nascimento que acontece nela, porém ainda mais, Maria é símbolo e «síntese da mesma Igreja». É uma maternidade que nasce do dom total de si e da chamada a converter-se em servidora do mistério. Na maternidade de Maria sintetiza-se tudo o que podemos dizer sobre a maternidade segundo a graça e sobre o lugar atual de Maria na Igreja inteira.

37. A maternidade espiritual de Maria possui algumas características determinadas:

a) Encontra o seu fundamento na realidade de ser Mãe de Deus e prolonga-se na maternidade para com os discípulos de Cristo e ainda com todos os seres humanos. Neste sentido, a cooperação de Maria é singular e distingue-se das cooperações «das outras criaturas». A sua intercessão tem uma característica que não é de uma mediação sacerdotal, como aquela de Cristo, mas que se situa na ordem e na analogia da maternidade. Associando Maria à sua obra, os dons que nos chegam do Senhor apresentam-se a nós com um aspecto materno, cheios da ternura e da proximidade da Mãe que Jesus quis partilhar conosco (cf. Jo 19, 27).

b) A cooperação materna de Maria é em Cristo e, portanto, participada, ou seja, «comoparticipação nesta única fonte, que é a mediação do próprio Cristo». Maria entra de uma maneira peculiar na única mediação de Cristo. A função materna de Maria «de modo algum ofusca ou diminui esta única mediação de Cristo; manifesta antes a sua eficácia. Com efeito, todo o influxo salvador da Virgem Santíssima sobre os homens» brota da «abundância dos méritos de Cristo, funda-se na Sua mediação e dela depende inteiramente, haurindo aí toda a sua eficácia». Na sua maternidade, Maria não é um obstáculo interposto entre os seres humanos e Cristo; pelo contrário, a sua função materna está indissoluvelmente unida à de Cristo e orientada a Ele. Assim entendida, a maternidade de Maria não pretende debilitar a única adoração que se deve somente a Cristo, mas estimulá-la. Por isso, devem-se evitar os títulos e expressões referidas a Maria que a apresentem como uma espécie de “para-raios” diante da justiça do Senhor, como se Maria fosse uma alternativa necessária diante da insuficiente misericórdia de Deus. O Concílio Vaticano II reafirmou como deveria ser o culto dado a Maria: «um culto orientado ao centro cristológico da fé cristã, de forma que, “honrando a Mãe, melhor se conheça, ame e glorifique o Filho”». Com efeito, a maternidade de Maria está subordinada à eleição por parte do Pai, à obra do Filho e à ação do Espírito Santo.

c) A Igreja não é somente um ponto de referência para a maternidade espiritual de Maria, mas é, precisamente, na dimensão sacramental da Igreja que se desenvolve sempre a sua função materna. Maria atua com a Igreja, na Igreja e para a Igreja. O exercício da sua maternidade encontra-se na comunhão eclesial, e não fora dela; conduz à Igreja e acompanha-a. A Igreja aprende de Maria a própria maternidade: no acolhimento da Palavra de Deus que evangeliza, converte e anuncia Cristo; no dom da vida sacramental do Batismo e da Eucaristia; e na educação e formação maternal que ajuda no nascimento e crescimento dos filhos de Deus. Por isso, pode dizer-se que «afecundidade da Igreja é a mesma fecundidade de Maria; e realiza-se na existência dos seus membros na medida em que eles revivem, em menor dimensão, o que a Mãe viveu, isto é, amam segundo o amor de Jesus».Do mesmo modo que a Igreja, Maria, como Mãe, espera que Cristo seja gerado em nós, sem ocupar o lugar d’Ele. Por isso, «graças à imensa fonte que brota do lado aberto de Cristo, a Igreja, Maria e todos os fiéis, de diferentes maneiras, tornam-se canais de água viva. Deste modo, o próprio Cristo revela a sua glória na nossa pequenez».

Intercessão

38. Maria está unida a Cristo de modo único, por causa da sua maternidade e por ser cheia de graça. Isto percebe-se na saudação do anjo (cf. Lc 1, 28), que utiliza uma palavra (kecharitōmenē) que é única e exclusiva em toda a Bíblia. Ela, que acolheu no seu ventre a força do Espírito Santo e foi Mãe de Deus, torna-se, por esse mesmo Espírito, Mãe da Igreja. Por essa peculiar união de maternidade e graça, a sua oração por nós tem um valor e uma eficácia que não se podem comparar com qualquer outra intercessão. São João Paulo II relacionava o título de “medianeira” com esta função de intercessão materna, porque ela «põe-se de “permeio”, isto é, faz de mediadora, não como uma estranha, mas na sua posição de mãe, consciente de que como tal pode ― ou antes, “tem o direito de” ― fazer presente ao Filho as necessidades dos homens».

39. A fé católica lê nas Escrituras que aqueles que estão junto a Deus no céu podem continuar a realizar semelhantes atos de amor, intercedendo por nós e acompanhando-nos. Vemos, por exemplo, que os anjos são «espíritos encarregados de um ministério, enviados ao serviço daqueles que hão de herdar a salvação» (Heb 1, 14). Fala-se de missões realizadas por anjos (cf. Tb 5, 4; 12, 12; Act 12, 7-11; Ap 8, 3-5). Havia anjos a auxiliar Jesus no deserto das tentações (cf. Mt 4, 11) e durante a paixão (cf. Lc 22, 43). Num dos Salmos, é-nos prometido que «Ele deu ordens aos seus anjos, para que te guardem em todos os teus caminhos» (Sl 91, 11).

40. Estes textos indicam-nos que o céu não está completamente separado da terra. O que abre a possibilidade de que intercedam por nós os que já estão no céu. O livro de Zacarias nos apresenta um anjo de Deus que diz: «Senhor do universo, até quando tardarás a compadecer-te de Jerusalém e das cidades de Judá, às quais fazes sentir a tua cólera, desde há setenta anos?» (Zc 1, 12). De modo análogo, o Apocalipse fala-nos dos “imolados”, dos mártires no céu, que intervêm pedindo a Deus que atue na terra para nos libertar das injustiças: «vi debaixo do altar as almas dos que tinham sido mortos, por causa da Palavra de Deus e por causa do testemunho que deram. E clamavam em alta voz: “Tu, que és o Poderoso, o Santo, o Verdadeiro! Até quando esperarás para julgar e tirar vingança do nosso sangue sobre os habitantes da terra?”» (Ap 6, 9-10). Já na tradição judaico-helenística aparecia a convicção que os justos falecidos intercedem pelo povo (cf. 2 Mac 15, 12-14).

41. Maria, que no céu ama o «resto da sua descendência» (Ap 12, 17), assim como acompanhava a oração dos apóstolos, quando receberam o Espírito (cf. Act 1, 14), também, agora, acompanha as nossas súplicas com a sua intercessão materna. Deste modo, continua a atitude de serviço e compaixão que mostrava nas bodas de Caná (cf. Jo 2, 1-11) e ainda hoje se dirige a Jesus, dizendo-lhe: «Não têm vinho» (Jo 2, 3). No seu canto de louvor, vemos Maria como uma mulher do seu povo, que louva Deus porque «exaltou os humildes [e] aos famintos encheu de bens» (Lc 1, 52-53), porque «acolheu a Israel, seu servo, lembrado da sua misericórdia, como tinha prometido a nossos pais» (Lc 1, 54-55), e reconhecemos a sua prontidão quando se aproxima sem demora para ajudar a sua prima Isabel (cf. Lc 1, 39-40). Por isso, o Povo de Deus confia firmemente na sua intercessão.

42. Entre os eleitos e glorificados junto a Cristo está, em primeiro lugar, a Mãe. Por isso podemos afirmar que existe uma colaboração singular de Maria na obra salvífica que Cristo realiza na sua Igreja. Trata-se de uma intercessão que a converte em sinal materno da misericórdia do Senhor. Desta maneira, porque Ele assim quis livremente, o Senhor outorga à sua própria ação em nosso favor um rosto materno.

Proximidade materna

43. A presença das diversas invocações, das imagens e dos santuários marianos manifestam a maternidade real de Maria que se faz próxima à vida dos seus filhos. Exemplo disso é a manifestação da Mãe ao índio São Juan Diego no monte de Tepeyac. Maria chama-o com as ternas palavras de uma mãe: «Meu filho, o menor, Juanito». E, diante das dificuldades que São Juan Diego lhe manifesta para levar a termo a missão encomendada, Maria revela a força da sua maternidade: «Não estou aqui, a que tenho a honra e a felicidade de ser tua mãe? [...] Não estás na prega do meu manto, na dobra dos meus braços?».

44. A experiência do afeto maternal de Maria que viveu São Juan Diego, é a experiência pessoal dos cristãos que recebem o afeto de Maria e que colocam em suas mãos «as necessidades da vida quotidiana, abrindo confiantes o seu coração para pedirem a sua intercessão materna e obterem a sua alentadora proteção». Além das manifestações extraordinárias da sua proximidade, existem constantes expressões quotidianas da sua maternidade na vida de todos os seus filhos. Ainda que não peçamos a sua intercessão, ela mostra-se próxima como Mãe, para nos ajudar a reconhecer o amor do Pai, a contemplar a entrega salvadora de Cristo, a acolher a ação santificadora do Espírito. É tão grande o seu valor para a Igreja que os pastores devem evitar qualquer instrumentalização política desta proximidade da Mãe. O Papa Francisco advertiu, em diversas ocasiões, e mostrou a sua preocupação pelas «propostas ideológicas e culturais de todos os géneros que querem apropriar-se do encontro de um povo com a sua Mãe».

Mãe da graça

45. Este sentido de “Mãe dos fiéis” permite falar de uma ação de Maria também em relação à nossa vida da graça. No entanto, convém advertir que certas expressões, que podem ser teologicamente aceitáveis, com facilidade estão carregadas dum imaginário e simbolismo que transmitem, efetivamente, outros conteúdos menos aceitáveis. Por exemplo, apresenta-se Maria como se ela tivesse um depósito de graça separado de Deus; então, não se percebe de modo tão claro que o Senhor, em sua generosa e livre omnipotência, quis associá-la à comunicação dessa vida divina que brota de um único centro que é o Coração de Cristo, não Maria. É frequente também que ela seja apresentada ou imaginada como uma fonte da qual emana toda graça. Se se tem em conta que a inabitação trinitária (graça incriada) e a participação da vida divina (graça criada) são inseparáveis, não podemos pensar que este mistério pode estar condicionado a uma “passagem” através das mãos de Maria. Imaginários deste tipo enaltecem a Maria de tal modo que a centralidade do mesmo Cristo pode desaparecer ou, pelo menos, ser condicionada. O Cardeal Ratzinger expressou que o título de Maria medianeira de todas as graças não era claramente fundado na Revelação, e em sintonia com essa convicção podemos reconhecer as dificuldades que este título implica tanto na reflexão teológica como na espiritualidade.

46. Para evitar estas dificuldades, a maternidade de Maria na ordem da graça deve entender-se como dispositiva. Por um lado, pelo seu caráter de intercessão, já que a intercessão maternal é expressão dessa «ajuda materna» que permite reconhecer em Cristo o único Mediador entre Deus e os homens. Por outro lado, a sua presença materna nas nossas vidas não exclui diversas ações de Maria que motivam a abertura dos nossos corações à ação de Cristo no Espírito Santo. Assim, de diversas maneiras, nos ajuda a dispormo-nos à vida da graça que somente o Senhor pode infundir em nós.

47. A nossa salvação é obra somente da graça salvadora de Cristo e de nenhum outro. Santo Agostinho afirmava que «este reino da morte é destruído em cada ser humano apenas pela graça do Salvador» e explicava-o claramente com a redenção do homem injusto: «Quem gostaria de morrer por um injusto, por um ímpio, por um iníquo, exceto somente Cristo que por ser tão justo aos injustos quis justificar? Portanto, meus irmãos, não tivemos obra meritória, mas apenas deméritos. Porém, ainda que tais eram as obras dos homens, sua misericórdia não os abandonou e [...] no lugar do castigo devido, outorgou-lhes a graça que não mereciam [...] para resgatar-nos, não a preço nem de ouro nem de prata, mas a preço do seu sangue derramado». Por isso, quando São Tomás de Aquino se pergunta se alguém pode merecer por outro, responde que «ninguém, salvo Cristo, pode merecer para outrem a primeira graça». Nenhum outro ser humano pode merecê-la em sentido estrito (de condigno), e neste ponto não existe nenhuma dúvida: «embora ninguém possa ser justo senão pela comunicação dos méritos da paixão de nosso Senhor Jesus Cristo». Também a plenitude de graça de Maria existe porque ela a recebeu gratuitamente, antes de qualquer ação sua, «em vista dos méritos de Jesus Cristo, Salvador do gênero humano». Somente os méritos de Jesus Cristo, entregue até o fim, são os que se aplicam à nossa justificação, pois «maior obra é a justificação do ímpio, que termina pelo bem eterno da participação divina, do que a criação do céu e da terra».

48. No entanto, um ser humano pode participar com seu desejo do bem do irmão e é razoável (congruo) que Deus atenda esse desejo de caridade que a pessoa expressa «orando» ou «pelas próprias obras de misericórdia». É verdade que este dom da graça pode ser derramado apenas por Deus, já que excede «à capacidade da nossa natureza» e que existe uma distância infinita entre a nossa natureza e a sua vida divina. Todavia, pode fazê-lo cumprindo o desejo da Mãe, que deste modo se associa alegremente à obra divina como humilde serva.

49. Como em Caná, Maria não diz a Cristo o que tem de fazer. Ela intercede manifestando a Cristo as nossas carências e necessidades, e os nossos sofrimentos, para que Ele atue com seu poder divino: «Não têm vinho» (Jo 2, 3). Também hoje ela nos ajuda a dispormo-nos à ação de Deus: «Fazei o que Ele vos disser» (Jo 2, 5). As suas palavras não são uma simples indicação, mas convertem-se numa verdadeira pedagogia materna que introduz a pessoa, sob a ação do Espírito, no sentido profundo do mistério de Cristo.Maria escuta, decide e atua para nos ajudar a abrir a existência a Cristo e à sua graça,porque Ele é o único que opera no mais íntimo do nosso ser.

Lá onde só Deus pode chegar

50. Como nos recorda o Catecismo, a graça santificante é «antes de tudo e principalmente, o dom do Espírito que nos justifica e nos santifica». Não é simplesmente uma ajuda, uma energia que se possui, mas «é o dom gratuito que Deus nos faz de sua vida infundida pelo Espírito Santo na nossa alma» que pode ser descrito como inabitação da Trindade no mais íntimo, como amizade com Deus, como aliança com o Senhor. Exclusivamente Deus pode fazê-lo, porque implica superar uma desproporção «infinita». Esta doação de si da Trindade, este «penetrar na alma» (illabitur) por parte de Deus mesmo, implica um efeito de transformação inerente no mais íntimo do cristão. São Tomás de Aquino, para esta penetração no íntimo do ser humano, utilizava este verbo que somente poderia aplicar-se a Deus, illabi, já que apenas Deus, não sendo uma criatura, pode chegar a essa intimidade pessoal sem violentar a liberdade e a identidade da pessoa. Somente Deus chega ao mais íntimo da pessoa para realizar a sua elevação e transformação quando se entrega como amigo e, por isso, «nenhuma criatura pode conferir a graça». São Tomás repete ao falar da graça sacramental: enquanto causa principal «só Deus causa o efeito interior do sacramento. Quer porque só Deus penetra na alma, no que recebe o efeito do sacramento, e não pode nenhum agente obrar imediatamente onde não está. Quer também porque a graça, efeito interior do sacramento, vem só de Deus».

51. Outros autores expressaram-se em modo semelhante, entre os quais destaca-se São Boaventura. Ele ensinava que quando Deus opera com a graça santificante num ser humano, torna-o absolutamente imediato a Ele. Deus, por graça, faz-se plenamente próximo ao ser humano, com uma absoluta imediatez, com um “entranhar-se” no íntimo do ser humano que somente Ele pode realizar. A mesma graça criada, então, não opera como um “intermediário”, mas é um efeito direto da amizade que Deus presenteia tocando diretamente o coração humano. E assim, sendo Deus quem realiza a transformação da pessoa quando se entrega como amigo, não existe meio algum entre Deus e o ser humano transformado. Somente Deus é capaz de penetrar assim, tão profundo, para santificar, até fazer-se absolutamente imediato, e apenas Ele pode fazê-lo sem anular a pessoa.

52. Na Encarnação, o Filho eterno e natural de Deusassume uma natureza humana que ocupa um lugar único na economia da salvação. Hipostaticamente unida ao Filho por uma graça que «é sem dúvida alguma infinita», essa Humanidade «recebeu a graça segundo uma eminência máxima. Por isso, pela eminência da graça que recebeu, compete-lhe [competit sibi] distribuir essa graça aos outros, o que pertence à razão de cabeça». Essa Humanidade participa na efusão da graça santificante, que dela transborda ou «abunda». Em consequência, «segundo sua humanidade, é princípio de toda graça» como Cabeça desde a qual esta chega aos demais («in alios transfunderetur»).Essa natureza humana é inseparável da nossa salvação, já que «com a encarnação, todas as ações salvíficas do Verbo de Deus fazem-se sempre em unidade com a natureza humana, que Ele assumiu para a salvação de todos os homens». Através da natureza humana assumida, o Filho de Deus «uniu-se de certo modo a cada homem» e «mereceu-nos a vida com a livre efusão do seu sangue». Pela graça, os fiéis se unem a Cristo e participam em seu mistério pascal, de modo que podem viver uma união íntima e única com Ele que São Paulo expressava com estas palavras: «já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim» (Gl 2, 20).

53. Nenhuma pessoa humana, nem sequer os apóstolos ou a Santíssima Virgem, pode atuar como dispensadora universal da graça. Apenas Deus pode conceder a graça e fá-lo por meio da humanidade de Cristo, já que «a plenitude da graça de Cristo homem ele a tem como unigênito do Pai». Ainda que a Santíssima Virgem Maria seja preeminentemente “cheia de graça” e “Mãe de Deus”, ela, como nós é filha adotiva do Pai e também, como escreve o poeta Dante Alighieri, «filha do teu Filho». Ela coopera na economia da salvação por uma participação derivada e subordinada; portanto, qualquer linguagem sobre sua “mediação” na graça deve entender-se em analogia remota com Cristo e sua mediação única».

54. Na perfeita imediatez entre um ser humano e Deus na comunicação da graça, nem mesmo Maria pode intervir. Nem a amizade com Jesus Cristo, nem a inabitação trinitária podem conceber-se como algo que nos chega através de Maria ou dos santos. Em todo caso, o que podemos dizer é que Maria deseja esse bem para nós e pede-o conosco. A liturgia, que é também lex credendi, permite-nos reafirmar esta cooperação de Maria, não na comunicação da graça, mas na intercessão materna. Com efeito, na liturgia da Solenidade da Imaculada Conceição, quando se explica em que sentido o privilégio concedido a Maria foi dado em vista do bem do Povo, afirma-se que foi disposta como «advogada de graça», ou seja, que intercede pedindo para nós o dom da graça.

55. Como ensina o Concílio Vaticano II, «o influxo salvador da Virgem Santíssima sobre os homens [...] de modo nenhum impede a união imediata dos fiéis com Cristo, antes a favorece». Por este motivo, se deve evitar qualquer descrição que faça pensar, de um modo neoplatónico, em uma espécie de derramamento da graça por etapas, como se a graça de Deus descesse, através de distintos intermediários – como Maria –, enquanto sua fonte última (Deus) permanecesse desconectada do nosso coração. Estas interpretações afetam negativamente a adequada compreensão do encontro íntimo, direto e imediato que a graça realiza entre o Senhor e o coração do fiel. O certo é que somente Deus justifica. Só o Deus Trindade. Somente Ele nos eleva para superar a desproporção infinita que nos separa da vida divina, só Ele atua em nós sua inabitação trinitária, só Ele penetra em nós e nos faz participar da sua vida divina. Não se honra Maria atribuindo-lhe alguma mediação na realização desta obra exclusivamente divina.

Água viva que jorra

56. Não obstante isto, dado que Maria está cheia de graça, e que o bem tende sempre a comunicar-se, facilmente aparece a ideia de uma espécie de “transbordamento” da graça que tem Maria, que só poderá ter um sentido adequado se não contradisser quanto foi dito até agora. Não apresentará dificuldade se se tratar, antes de tudo, das formas de cooperação que já mencionamos (intercessão, proximidade materna que convida a abrir o coração para a graça santificante) e que o Concílio Vaticano II apresentou como uma cooperação variada por parte das criaturas «que participam dessa única fonte».

57. O caráter fundamentalmente dispositivo da cooperação dos fiéis – principalmente de Maria – na comunicação da graça, aparece plasmado na interpretação tradicional dos “rios de água viva” que brotam do coração deles (cf. Jo 7, 38). Embora seja uma imagem potente, que se poderia interpretar como se os fiéis fossem canais de uma transmissão perfeita da graça santificante, contudo, os Padres da Igreja, na hora de concretizar como se realiza esta efusão dos rios do Espírito, plasmaram-no em ações de tipo dispositivo. Por exemplo, a oração, o ensinamento e outras formas de transmissão do dom da Palavra revelada.

58. Orígenes aplica-o à ciência das Escrituras ou à percepção de seus sentidos espirituais. Para São Cirilo de Alexandria este transbordamento de águas é o ensinamento dos mistérios da fé, a “pura mistagogia” no sentido profundo, que não é meramente intelectual, mas disposição ou preparação de toda a pessoa. São Cirilo de Jerusalém sustenta que é o ensinamento da Escritura quando leva à luz. São João Crisóstomo refere-se à sabedoria de Estevão ou à autoridade da palavra de Pedro. Santo Ambrósio afirma: «estes são os rios que ouvem a Palavra de Deus e falam, para infundir a palavra nos corações dos indivíduos», e aplica-o desta maneira: «que a água da doutrina celestial flua [...] que a seiva da palavra do Senhor aspirja» o coração de cada um. Também para São Jerónimo a água é ensinamento do Salvador, como para São Gregório Magno, que ensina ser «uma vontade piedosa para com o próximo». Estas interpretações dos rios de água viva que derramam os cristãos concentram-se no conhecimento das Escrituras e seus mistérios, e não se referem, em geral, a um conhecimento meramente intelectual, mas sapiencial e de iluminação do coração para se abrir à realidade mesma dos Mistérios.

59. Em distintos Padres e Doutores da Igreja encontramos, também, uma explicação mais ampla, onde se integram, para além da pregação ou da catequese, as obras que oferecem ajuda ao próximo em suas necessidades, ou um testemunho de amor. Assim, Santo Hilário entende os rios de água viva como as obras do Espírito Santo através das virtudes que atuam para benefício do próximo. Santo Agostinho aplica a imagem à «benevolência, com a qual se deseja ajudar o próximo». Na Idade Média continua-se esta perspectiva que chega até São Tomás de Aquino, para quem os rios de água viva se manifestam porque quando alguém «se apressa a aconselhar o próximo e comunica aos outros diversos dons da graça, de seu seio jorram águas vivas».

60. Quando São Tomás fala dos «diversos dons da graça» para o serviço do próximo, refere-se aos diversos dons carismáticos, porque «como se diz (1 Cor 12, 10), a um se dá o dom das línguas, a outro o de curas, etc.». Este aspecto também está presente em São Cirilo de Jerusalém: ele indica que os rios de água do Espírito, que se comunicam através dos cristãos, são manifestados quando Este «se serve da língua de uns para o carisma da sabedoria; ilumina a mente de outros com o dom da profecia; concede a alguém o poder de expulsar os demónios [...]. [O Espírito] fortalece, em alguns, a temperança; em outros, a misericórdia; ensina a alguém a prática do jejum e da vida ascética».

61. Algo semelhante podemos dizer com relação à interpretação de Jo 14, 12, referido aos fiéis que realizam “obras maiores” (meizona) que as do Cristo terreno. Os fiéis participam da obra de Cristo enquanto eles também, de algum modo, estimulam a fé de outros com o anúncio da Palavra. Assim se diz explicitamente em Jo 17, 20b: «aqueles que hão de crer em mim, por meio da sua palavra». O mesmo se sugere em Jo 14, 6-11, onde as obras de Cristo são as que manifestam o Pai (v. 8). As obras dos fiéis, concentradas no anúncio do Evangelho pela palavra, colocam-se em paralelismo com as obras de Cristo. Jesus anuncia: «se cumpriram a minha palavra, também hão de cumprir a vossa» (Jo 15, 20c). E assim como quem escuta a palavra de Cristo tem a vida eterna (cf. Jo 5, 24), Jesus anuncia que outros crerão através da palavra dos que creem (cf. Jo 17, 20). Todavia, isto implica não apenas as palavras, mas também o testemunho eloquente dos cristãos e, por isso, Jesus pede ao Pai que os cristãos estejam unidos para que «o mundo creia» (Jo 17, 21).

Amor que se comunica no mundo

62. O Evangelho de João une estreitamente a caridade fraterna a esta comunicação do bem. Com efeito, a afirmação «se me tendes amor, cumprireis os meus mandamentos» (Jo 14, 15), é paralela àquela outra: «quem crê em mim também fará as obras que Eu realizo» (Jo 14, 12). Quando Cristo fala do fruto que espera dos seus discípulos, termina identificando-o com o amor fraterno (cf. Jo 15, 16-17). Também São Paulo, depois de falar sobre as obras extraordinárias que podem realizar os fiéis (cf. 1 Cor 12), propõe um caminho mais excelente quando diz «Aspirai, porém, aos melhores dons (ta meizona). Aliás, vou mostrar-vos um caminho que ultrapassa (kath’hyperbolēn) todos os outros»: o amor (1 Cor 12, 31; cf. 13, 1). As obras de amor ao próximo, também o trabalho quotidiano ou o empenho por mudar este mundo, convertem-se então num canal de cooperação com a obra salvífica de Cristo.

63. Neste sentido se expressaram também os últimos Pontífices. São João XXIII ensinava que «todo o trabalho e todas as atividades, mesmo as de caráter temporal, que se exercem em união com Jesus, divino Redentor, se tornam um prolongamento do trabalho de Jesus e d’Ele recebem virtude redentora [...] para estender e difundir aos outros os frutos da Redenção». São João Paulo II entendia esta colaboração como reconstrução, junto com Cristo, do bem que foi danificadono mundo por causa do pecado, porque «o Coração de Cristo quis precisar da nossa colaboração para reconstruir a bondade e a beleza», e «é esta a verdadeira reparação pedida pelo Coração do Salvador». O Papa Bento XVI sustentava que sendo «destinatários do amor de Deus, os homens são constituídos sujeitos de caridade, chamados a fazerem-se eles mesmos instrumentos da graça, para difundir a caridade de Deus e tecer redes de caridade. A esta dinâmica de caridade recebida e dada, propõe-se dar resposta a doutrina social da Igreja». E o Papa Francisco ensinou que, para Santa Terezinha do Menino Jesus, «não se trata apenas de deixar que o Coração de Cristo difunda a beleza do seu amor no nosso coração, através de uma confiança total, mas também que, através da própria vida, chegue aos outros e transforme o mundo [...] isto acontece se o nosso amor [...] se transforma em atos de amor fraterno com os quais curamos as feridas da Igreja e do mundo. Deste modo, oferecemos novas expressões da força restauradora do Coração de Cristo».

64. Esta é a cooperação possibilitada por Cristo e suscitada pela ação do Espírito que, no caso de Maria, distingue-se da cooperação de qualquer outro ser humano pelo caráter materno que Cristo mesmo, na Cruz, lhe atribuiu.

Critérios

65. Qualquer outro modo de compreender esta cooperação de Maria na ordem da graça, especialmente se se pretende atribuir-lhe alguma forma de intervenção ou de instrumentalidade perfectiva ou de causa secundária na comunicação da graça santificante, deveria prestar especial atenção a alguns critérios já indicados na Constituição dogmática Lumen gentium:

a) Devemos refletir sobre o modo como Maria pode favorecer a nossa união «imediata» com o Senhor, que Ele mesmo realiza ao conferir a graça que só de Deus podemos receber, sem entender, porém, a união com Maria como mais imediata do que aquela com Cristo. Este risco está presente, sobretudo, na ideia de que Cristo nos entrega Maria como um instrumento ou causa secundária perfectiva na comunicação de sua graça.

b) O Concílio Vaticano II sublinhou que «todo o influxo salvador da Virgem Santíssima sobre os homens se deve ao beneplácito divino e não a qualquer necessidade». Este influxo pode pensar-se apenas a partir da livre decisão de Deus que, apesar da sua própria ação ser transbordante e superabundante, quer associar – livre e gratuitamente – Maria à sua obra. Por isso, não é lícito apresentar a ação de Maria como se Ele necessitasse dessa ação para operar a Salvação.

c) Devemos entender a mediação de Maria não como um complemento, para que Deus possa operar plenamente, com maior riqueza e beleza, mas «de maneira que nada tire nem acrescente à dignidade e eficácia do único mediador, que é Cristo». Ao explicar a mediação de Maria, deve ressaltar-se que Deus é o único Salvador que aplica de modo exclusivo os méritos de Jesus Cristo, os únicos necessários e completamente suficientes para a nossa justificação. Maria não substitui o Senhor em algo que ele não faça (não subtrai nem acrescenta). Se, na comunicação da graça, ela não acrescenta nada à mediação salvífica de Cristo, não deve pensar-se em Maria como instrumento primário dessa doação. Se ela acompanha uma ação de Cristo, por obra do mesmo Cristo, de modo nenhum isto deve ser entendido como uma ação paralela. Ou melhor, sendo associada a Ele, é Maria que recebe do seu Filho um presente que a situa mais além de si mesma, porque é-lhe concedido acompanhar a obra do Senhor com seu caráter materno. Voltemos então ao ponto mais seguro: a contribuição dispositiva de Maria, a partir da qual pode pensar-se numa ação em que ela contribua com algo próprio, na medida em que «pode dispor de algum modo» aos outros. Porque «pertence à potência suprema conduzir ao fim último, enquanto as potências inferiores ajudam à consecução deste fim dispondo».

66. Tudo o que foi dito anteriormente não ofende ou humilha Maria, porque todo o seu ser reporta ao seu Senhor. «A minha alma glorifica o Senhor» (Lc 1, 46). Para ela não existe outra glória que a de Deus. Sendo Mãe, duplica a sua alegria vendo como Cristo manifesta a beleza inesgotável e superabundante de sua glória curando, transformando e enchendo de si o coração desses filhos, que ela acompanhou no seu caminho até ao Senhor. Portanto, um olhar dirigido a ela que nos distraia de Cristo, ou a coloque no mesmo nível do Filho de Deus, ficaria fora da dinâmica própria de uma fé autenticamente mariana.

As graças

67. Alguns títulos, como por exemplo o de Medianeira de todas as graças, tem limites que não facilitam a correta compreensão do lugar único de Maria. Com efeito, ela, a primeira redimida, não pode ter sido medianeira da graça que ela mesma recebeu. Este não é um pormenor de pequena importância, porque manifesta algo central: que também nela o dom da graça a precede, procedendo da iniciativa absolutamente gratuita da Trindade, em atenção aos méritos de Cristo. Ela, como todos nós, não mereceu a sua justificação por alguma ação sua precedente, porém nem mesmo por uma ação posterior. Também para Maria, a sua amizade com Deus pela graça será sempre gratuita. A sua figura preciosa é testemunha suprema da receptividade fiel de quem, mais e melhor do que qualquer outro, se abriu com docilidade e plena confiança à obra de Cristo e, ao mesmo tempo, é o melhor sinal do poder transformador dessa graça.

68. Por outro lado, o título antes mencionado corre o perigo de ver a graça divina como se Maria se convertesse em uma distribuidora dos bens ou energias espirituais em desconexão com a nossa relação pessoal com Jesus Cristo. Contudo, a expressão “graças”, referida à materna ajuda de Maria, em distintos momentos da vida, pode ter um sentido aceitável. O plural expressa todos os auxílios, também materiais, que o Senhor pode dar-nos escutando as intercessões da Mãe; auxílios que, por sua vez, dispõem os corações para se abrirem ao amor de Deus. Deste modo, Maria, como mãe, tem uma presença na vida quotidiana dos fiéis muito superior à proximidade que possa ter qualquer outro santo.

69. Ela, com a sua intercessão, pode implorar para nós os impulsos internos do Espírito Santo que chamamos “graças atuais”. Trata-se daqueles auxílios do Espírito Santo que operam também nos pecadores para os dispor à justificação, e também nos já justificados pela graça santificante, para os estimular ao crescimento. Neste sentido preciso, deve interpretar-se o título de “Mãe da graça”. Ela humildemente colabora para que abramos o coração ao Senhor, que é o único que pode justificar-nos com a ação da graça santificante, ou seja, quando Ele derrama em nós a sua vida trinitária, habita em nós como amigo e nos faz partícipes da sua vida divina. Isto é exclusivamente obra do mesmo Senhor, porém não exclui que, através da ação materna de Maria, possam chegar aos fiéis aquelas palavras, imagens e estímulos diversos que os ajudem a seguir adiante na vida, a dispor o coração à graça que o Senhor infunde ou a crescer na vida da graça, recebida gratuitamente.

70. Estas ajudas chegam até nós do Senhor e nos são apresentadas com um aspecto materno, cheias da ternura e da proximidade da Mãe que Jesus quis compartilhar conosco (cf. Jo 19, 25-28). Maria desempenha assim uma ação singular para nos ajudar a abrir o coração a Cristo e à sua graça santificante que eleva e cura. Quando ela se comunica fazendo chegar diversas “moções”, estas devem ser entendidas sempre como estímulos para abrir nossas vidas ao Único que opera no mais íntimo do nosso ser.

A nossa união com Maria

71. O Concílio preferiu chamar Maria «mãe na ordem da graça», que expressa melhor a universalidade da cooperação materna de Maria e que é inegável num sentido preciso: ela é a Mãe de Cristo, que é a graça por excelência e o Autor de toda graça.

72. Esta maternidade de Maria na ordem da graça – que brota do mistério pascal de Cristo – implica também que cada discípulo estabeleça com Maria «uma relação única e irrepetível». São João Paulo II falava de uma «dimensão mariana da vida dos discípulos de Cristo», que se expressa como «resposta ao amor duma pessoa e, em particular, ao amor da mãe». A vida da graça inclui a nossa relação com a Mãe. A união com Cristo por graça, une-nos, ao mesmo tempo, a Maria numa relação feita de confiança, ternura e afeto sem reservas.

A primeira discípula

73. Ela é «a primeira discípula, aquela que melhor aprendeu as coisas de Jesus». Maria é a primeira daqueles que «escutam a Palavra de Deus e a põem em prática» (Lc 11, 28); é a primeira a colocar-se entre os humildes e pobres do Senhor para nos ensinar a esperar e receber, com confiança, a salvação que vem apenas de Deus. Deste modo, Maria «tornava-se, em certo sentido, a primeira “discípula” do seu Filho, a primeira a quem ele parecia dizer: “Segue-me”, mesmo antes de dirigir este chamamento aos Apóstolos ou a quaisquer outros (cf. Jo 1, 43)». Ela é modelo de fé e caridade para a Igreja pela sua obediência à vontade do Pai, cooperação na obra redentora do seu Filho e abertura à ação do Espírito Santo. Por isso, diz santo Agostinho que vale «mais para Maria ser discípula de Cristo do que ter sido mãe de Cristo». O Papa Francisco insistiu que ela «é mais discípula que mãe». Maria é, definitivamente, «a primeira e a mais perfeita discípula de Cristo».

74. Maria é, para todo o cristão, «a primeira na fé: é “aquela que acreditou”; e, precisamente com esta sua fé de esposa e de mãe, ela quer atuar em favor de todos os que a ela se entregam como filhos». E fá-lo com um afeto cheio de sinais de proximidade que os ajudam a crescer na vida espiritual, ensinando-os a deixar que a graça de Cristo atue cada vez mais. Nesta relação de afeto e confiança, ela, que é a “cheia de graça”, ensina cada cristão a receber a graça, a conservar a graça recebida e a meditar a obra que Deus faz nas suas vidas (cf. Lc 2, 19).

75. Face a pretensos fenómenos sobrenaturais, que receberam um juízo positivo por parte da Igreja e nos quais aparecem algumas das expressões ou títulos, como os anteriormente citados, ter-se-á em conta que «no caso em que seja concedido por parte do Dicastério um Nihil obstat [...], tais fenômenos não se tornam objeto de fé – isto é, os fiéis não são obrigados a prestar a eles um assentimento de fé ».

Mãe do Povo fiel

76. «Maria, a primeira discípula, é a Mãe». Na Cruz, Cristo entrega-nos a Maria, e deste modo «conduz-nos a Ela, porque não quer que caminhemos sem uma mãe». Ela é a Mãe fiel que se tornou «Mãe de todos os que creem», e, ao mesmo tempo, é «a Mãe da Igreja evangelizadora», que nos acolhe assim como Deus nos quis convocar, não apenas como indivíduos isolados, mas como Povo que caminha: «nossa Mãe, Maria, quer sempre caminhar conosco, estar perto, ajudar-nos com a sua intercessão e o seu amor».Ela é a Mãe do Povo fiel que, «movida por uma ternura amorosa, caminha em meio ao seu povo e cuida das suas angústias e vicissitudes».

O amor detém-se, contempla o mistério, desfruta em silêncio

77. O Povo fiel não se distancia de Cristo, nem do Evangelho, quando se aproxima dela, mas é capaz de ler «nesta imagem materna [...] todos os mistérios do Evangelho». Porque nesse rosto materno vê refletido o Senhor que nos busca (cf. Lc 15, 4-8), que vem ao nosso encontro com braços abertos (cf. Lc 15, 20), que se detém diante de nós (cf. Lc 18, 40) que se inclina e nos levanta até à altura do seu rosto (cf. Os 11, 4), que nos olha com amor (cf. Mc 10, 21) e não nos condena (cf. Jo 8, 11; Os 11, 9). No seu rosto materno muitos pobres reconhecem o Senhor que «derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes» (Lc 1, 52). Esse rosto de mulher canta o mistério da Encarnação. Nesse rosto de Mãe, transpassada pela espada (cf. Lc 2, 35), o Povo de Deus reconhece o mistério da Cruz, e esse mesmo rosto, banhado pela luz pascal, percebe que Cristo está vivo. E ela, que recebeu o Espírito Santo em plenitude, é quem sustenta aos apóstolos em oração no cenáculo (cf. Act 1, 14). Por isso, podemos dizer que, «a fé de Maria, atendo-nos ao testemunho apostólico da Igreja, torna-se, de alguma maneira, incessantemente a fé do Povo de Deus que está a caminho».

78. Como diziam os Bispos latino-americanos, os pobres «encontram a ternura e o amor de Deus no rosto de Maria. Nela veem refletida a mensagem essencial do Evangelho». O Povo simples e pobre não separa a Mãe gloriosa de Maria de Nazaré, que encontramos nos Evangelhos, pelo contrário, reconhece a simplicidade atrás da glória e sabe que Maria não deixou de ser uma deles. É aquela que, como qualquer mãe, carregou no ventre o seu filho, o amamentou e o criou com carinho e com a ajuda de São José, não lhe faltando os sobressaltos e as dúvidas da maternidade (cf. Lc 2, 48-50). Ela é aquela que: canta ao Deus que «aos famintos encheu de bens e aos ricos despediu de mãos vazias» (Lc 1, 53); sofre com os noivos que ficam sem vinho para a festa (cf. Jo 2, 3); sabe correr para dar uma mão à sua prima que necessitava ajuda (cf. Lc 1, 39-40); se deixa ferir, como que atravessada por uma espada, por causa da história do seu povo, onde o seu filho é «sinal de contradição» (Lc 2, 34); compreende o que é ser migrante ou exilado (cf. Mt 2, 13-15); na sua pobreza só pode oferecer um par de pombinhos (cf. Lc 2, 24) e sabe o que é ser desprezada por ser da família do pobre carpinteiro (cf. Mc 6, 3-4). Os povos sofredores reconhecem que Maria caminha com eles lado a lado e, por isso, recorrem a ela, sua Mãe, implorando ajuda.

79. A proximidade da Mãe produz uma piedade mariana “popular”, que tem expressões diversas nos distintos povos. Os mais variados rostos de Maria – coreano, mexicano, congolês, italiano e tantos outros – são formas de inculturação do Evangelho que refletem, em cada lugar da terra, «a ternura paterna de Deus» que chega até as entranhas dos nossos povos.

80. Contemplamos a fé do Povo de Deus, onde tantos irmãos que creem reconhecem espontaneamente Maria como Mãe, tal como Cristo mesmo no-la propôs na Cruz. O Povo de Deus gosta de peregrinar aos diferentes santuários marianos, onde encontra consolo e fortaleza para seguir adiante, como quem, no meio do cansaço e da dor, recebe a carícia de sua Mãe. A Conferência de Aparecida soube expressar com clareza e beleza o profundo valor teologal desta experiência. Nada melhor que terminar esta Nota com estas palavras:

«Destacamos as peregrinações, onde é possível reconhecer o Povo de Deus a caminho. Aí o cristão celebra a alegria de se sentir imerso em meio a tantos irmãos, caminhando juntos para Deus que os espera. O próprio Cristo se faz peregrino e caminha ressuscitado entre os pobres. A decisão de caminhar em direção ao santuário já é uma confissão de fé, o caminhar é um verdadeiro canto de esperança e a chegada é um encontro de amor. O olhar do peregrino se deposita sobre uma imagem que simboliza a ternura e a proximidade de Deus. O amor se detém, contempla o mistério, desfruta dele em silêncio. Também se comove, derramando todo o peso de sua dor e de seus sonhos. A súplica sincera, que flui confiante, é a melhor expressão de um coração que renunciou à autossuficiência, reconhecendo que sozinho nada pode. Um breve instante condensa uma viva experiência espiritual».

Mãe do Povo fiel, rogai por nós.

O Sumo Pontífice Leão XIV, no dia 7 de outubro de 2025, Memória Litúrgica de Nossa Senhora do Rosário, aprovou a presente Nota, decidida na Sessão Ordinária deste Dicastério do dia 26 de março de 2025, e ordenou sua publicação.

Dado em Roma, na sede do Dicastério para a Doutrina da Fé, aos 4 de novembro de 2025, Memória Litúrgica de São Carlos Borromeu.

Víctor Manuel Card. Fernández
Prefeito

Mons. Armando Matteo
Secretário
para a Secção Doutrinal

Leo PP. XIV
7 de outubro de 2025"

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